terça-feira, 9 de outubro de 2018

Em mim.




Por Vitalina de Assis.




Há muitos anos atrás minha mente era muito compactada, possuía uma “concepção espiritual” e acreditava que aquela forma de crer e de exercer esta crença, era a correta. Meu mundo se resumia na seguinte frase: eu sou de Deus e os outros, que não estão na minha igreja, são do mundo. Existiam aqueles que estavam na mesma igreja participando do culto, mas eram  mundanos, não   haviam passado pelo batismo nas águas, ouviam músicas que não eram evangélicas, frequentavam barzinho, fumavam, bebiam, eram do mundo mesmo.

Eu estava feliz nesta redoma, tudo era muito delimitado, sabia-se exatamente o que fazer ou pensar, “mentezinha” pequena, não? Era jovem demais, pouco mais que uma adolescente em uma época em que a adolescência era apenas sinônimo de “aborrecência”, hoje não mais, com certeza.

Muitos anos depois dei um salto para a faculdade, então as coisas começaram a mudar, comecei a filosofar, menos... questionar seria mais adequado, dúvidas seriam a nova estrada, ruazinha a trilhar.
Ouvi uma professora de Filosofia insistir na palavra caminho. Acendeu uma luzinha, estaria ela insinuando “O caminho, a verdade e a vida”? Estaria falando de Jesus de uma forma que eu desconhecia? Fiquei deveras incomodada, melhor - mexida. E ela não parou de lançar seus dados sobre mim  e o que guardei no meu âmago foi isto: toda verdade não é única, toda verdade é contestável e toda verdade pode ser absoluta, a minha pelo menos, até que..., mas, nenhuma será autêntica, se não for fruto de um empirismo.

Eita!

Empirismo, que belo acréscimo ao meu léxico quase sagrado, senti que eu estava adentrando solo profano e aquilo me atraía sedutoramente. Na verdade, toda forma de conhecimento é um ato profanador, pois fere nosso conforto, confronta nosso conhecimento, abala estruturas nada sólidas e machucam. Não há de desconstruir-se algo que não venha  provocar dores, todo conhecimento carrega sua parcela de desconforto. Dar à luz é um ato de dor profunda ao que concebe e ao que recebe.

O empirismo tinha sua própria magia desafiante e “desconstrutora”. Meus dominós estavam todos enfileirados em uma segura ordem e de repente, senti uma leve oscilação, help! Como é que eu conseguiria mantê-los de pé? Não poderia ainda que me esforçasse, meu desejo sincero era vê-los caírem um a um e o empirismo estava a postos para tudo justificar. Aprendi com o filósofo John Locke que a minha mente estava  mais   para “uma folha em branco, tabula rasa” apta para ser impressa com as experiências que eu teria que vivenciar, ou  colocar em xeque alguns conceitos, nada que pudesse por em risco minha identidade, mas apenas legitima-la.


Os anos  passaram e meu empirismo levou-me à certeza de que não há como fechar este ciclo, podemos virar uma página e seguir com a leitura, mas em dado momento, um flash-back se faz necessário e nos vemos mergulhando em memórias esquecidas. Algumas memórias me parecem “gatilho”, tamanho o reboliço de emoções evocadas, fico perdida em meio a sensações e sentimentos, mas são momentos que me forçam a uma nova releitura. Nada é exatamente o que parece ser e o que está diante dos nossos olhos possuem muitas nuances, vozes, cheiro, dimensão e merecem respeito. Certo seria ficar contemplativa, quieta, distante, silenciosa e esperar, esperar. Sei da angústia que a espera carrega nos ombros e de sua habilidade ninja em lança-la, sobre os nossos, entretanto, uma medida de paciência e fé há de colocar tudo, no seu devido lugar.

terça-feira, 25 de setembro de 2018



Ao ler-me. 
Vitalina de Assis.




Demarcar termos ou limites; fixar. Indicar com precisão. Diferençar. Resolver. Ordenar. Trazer consigo. Ocasionar. Introduzir, decidir. Distinguir, assentar.

Esta é o significado de determinação segundo o dicionário Aurélio. Quanto mais  associo estes significados à minha pessoa sinto que não combino muito com estes termos, isto, no meu olhar crítico, este olhar que todos nós carregamos e que por vez ou outra ofende nossa identidade  interior.

Não sei quando aprendemos a nos resignar e a aceitar rótulos que não nos define, e que  certamente não rouba nossa essência, embora acreditemos que sim inúmeras vezes. Nossa essência jamais poderá ser roubada, pois se encontra em lugar que o outro, não pode penetrar, não conhece o acesso e ainda que fosse o Indiana Jones ficaria à margem, completamente desolado por sua incompetência por não encontrar o tesouro.

A este lugar secreto, onde repousa nosso tesouro, só nós possuímos o acesso e quantas vezes ao chegarmos lá, não nos damos conta da riqueza e do brilho e isto porque existem inúmeras vozes, rótulos que estão a ofuscar encobrindo o que não pode ser encoberto e por vezes, aceitamos o inaceitável.

Preciso reconhecer que tenho o poder de demarcar, limitar, fixar, indicar com precisão e, por ter em mim, no mais recôndito do meu ser, a verdade de que sou mais do que o corpo que  me abriga, mais do que o conhecimento adquirido no dia a dia, muito mais do que penso ser ou ter.  Sou parte de Deus, uma fração de sua divindade e quando me reconheço, sei o quanto assumir e aceitar esta divindade me aproxima do meu propósito de vida.  Ciente disto posso diferençar, resolver, ordenar, trazer comigo. Ocasionar, introduzir, decidir. Distinguir o que ao redor se move, e decidir se permito que se assente como um sentimento que me torna melhor, ou soprar como a brisa e lançar à brisa minha profunda gratidão.  

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Afinal, todo mundo tem seu dia de Spike - 2ª PARTE.






Estou confuso, interiormente confuso. Não sei o que pode ter mudado na ordem dos meus sentidos após a cirurgia, mas algo sinistro aconteceu.


Saí daquela cirurgia meio aéreo, efeito da anestesia ouvi dizer. Minha cabeça rodava sem sair do lugar e imagens que eu desconhecia, com cores que não eu sabia identificar se apresentavam ante meus olhos e acenavam chamando-me.... vem... vem... vem. Como eu poderia ir se minha mãe me abraçava dizendo: 

-  calminha Spike está tudo bem, daqui a pouco vamos pra casa. 

Casa, como é bom ouvir esta palavra, é muito mais do que uma agradável sonoridade. Casa é lar, é onde você se encontra, é seu território sem nunca ter tido a necessidade de lutar pela posse. Podem acreditar, ainda me lembro do dia em que cheguei naquele apartamento, parecia bem maior do que o da minha mãe canina, a Lara, Tamara era a mãe humana de Lara Larinha, portanto minha avó. Também me lembro dela, era muito carinhosa comigo e recebia muitas visitas, os irmãos da igreja e em uma noite pra lá de especial eu  conheci minha mãe Vitalina e sua filha Thamyrez, esta ficou literalmente babando por mim. Thamyrez devia ter quatro ou cinco anos e não me deixou em paz, não quis me largar nem para comer, imagina isto. Minha vó Tamara ficou observando e vi no seu olhar, um misto de emoção e uma lágrima fininha no canto de seus olhos. Olhava para mim, depois para a Thamyrez e fitou minha mãe, que na época, era sua Pastora. Não sei como tive esta intuição, mas sabia que meu destino havia sido selado naquele momento. Aquele olhar que elas trocaram dizia muita coisa, de um lado senti o ato de dar, doar uma vida para ser amada e cuidada e do outro, o ato de receber, eu quero amar e cuidar de você. Mais alguns minutos e chegava ao fim aquele encontro alegre, foram feitas algumas preces de agradecimento e eu no colo da maninha. Minha vó se aproxima da pastora e a ouço dizer: 

- Pastora Cida, (era este seu nome de guerra, rs)  a Thamyrez não desgrudou do filhotinho da Lara nem por um segundo, vou dar ele pra ela agora, pode ser? 

Minha mãe sorriu de uma orelha a outra, mas é lógico que ela estava de olho em mim e assim encontrei o meu lar, doce lar. Thamyrez mal dormiu nesta noite, ficou me corujando e seguindo meus passinhos. Ela não entendia que eu precisava de espaço para explorar cada cantinho e batizar cada lugarzinho especial, mas fiquei com vergonha de fazer xixi pela casa afora, pois já tinha sido colocado um jornal estratégico na área, bem debaixo do tanque e então, apenas lambi discretamente aqui e ali e corri para o jornal. 

O cansaço tomou conta de mim, eu queria dormir e Thamyrez me levou pro quarto dela, mas eu não queria dormir ali. Meu alvo? Quarto da minha mãe. Fingi adormecer e ela dormiu sem fingimentos, eu levantei e me instalei ao lado da cabeceira da mamãe, ela sorriu, acariciou minha cabeça ao dizer:

 -  menino, vamos dormir. Você vai se chamar Spike, Spike White. Bora dormir, Spike? 

Gostei do nome chick! Nada de Branquinho, Totó, Lulu, Luke. Spike, esse cara sou. "Nossa, que menino esperto" já estava virando clichê. Era música aos meus ouvidos e verdade seja dita, isto eu sou mesmo. Minha inteligência canina sempre foi muito aguçada e como conversavam muito comigo, só faltava mesmo era eu abrir a boca e dizer algumas palavras, mas ficariam muito assustados, então segurava a minha onda e me comportava super bem, um gentledog  (ok, não existe esta palavra no seu vocabulário? É bom ir se acostumando com minha criatividade) que não perdia minha mãe de vista. Ela conversa o tempo todo comigo, pergunta se sua  roupa está boa, fala de seus amores e desafetos e já a vi chorando algumas vezes. O que eu faço? Fico de pé e coloco minhas patinhas em sua perna. Ela me olha, me faz um chamego e para de chorar ou solta o verbo e conta tudo o que está acontecendo. Presenciei muitos momentos dolorosos, separação, divórcio e outras coisas que um bom confidente jamais deve contar para alguém, pois guardamos na alma e sentimos a dor do outro. Ela me olhava com carinho e dizia: 

- Tem alguém muito especial aí dentro de você cuidando de mim, não tem? 

Eu ficava meio desconcertado com esta pergunta que não parecia ter lógica. Como assim, alguém dentro de mim? Não é desta forma que fomos criados. Somos seres únicos, temos alma e amamos, amamos muito. Arrisco dizer que se somos possuídos, este alguém que nos possui é um puro sentimento na sua mais profunda essência, é o amor. Sou feito de amor da cabeça aos pés e nem pensem que Ana Carolina é  assim como  gosta de cantar, pois não é mesmo. Entenda-me, não estou falando mal, desacreditando de sua música, ou desmerecendo suas intenções, mas humanos amam por medidas fracionadas, nós pets, amamos por inteiro, na totalidade e isto significa que se não somos amados na mesma medida, a nossa vai sempre extrapolar. Se amamos mais A do que B? Eu não afirmaria isto, o que eu sei é que a nossa alma se liga à alma de um humano que nos cuida, ou vice-versa, e eu ainda não sei como se processa esta escolha, mas compreendo que ela existe.

O Xamanismo acredita que cada humano tem o seu "animal de poder", ou seja, guias animais protetores que podem  ajudá-los na sua jornada, uma vez que por suas características podem aumentar  sua força e os ajudar a vencer suas fraquezas. Eu acredito nisto, mas você já percebeu que nem todos os humanos são capazes de adotar um animal, assim como também não tem "vocação" para gerarem filhos? Então eu só posso concluir que, quando um humano é escolhido para ter seu "filhote" e quando este "filhote" elege seu humano naquele grupo, ambos foram ligados por laços estreitos de amor. Minhas irmãs, quando crianças, com oito anos de diferença tiveram várias fases: cuidar, amar, brigar, ficar sem conversar por horas e até tapa já vi rolar. Thamyrez cresceu rápido, a maior da casa e tamanho, (sou pequeno, mas posso compreender) impõe respeito e Talita tinha que ficar pianinho. Eu também tive minhas fases luas, mas em todas elas prevaleceu o amor.

Então, após a cirurgia, já sem o tumor, sem minhas respeitáveis e inocentes bolas e alguns dentes fora da minha boca, fui voltando a mim lentamente e quando me senti sóbrio o bastante pedi para descer pro chão. Que felicidade poder andar, estar vivo e apesar daquele enjoo, caminhei até à porta da sala de cirurgia. O anestesista ali estava se organizando para receber outro paciente, mirei-o com um terno olhar e ele entendeu que era um gesto de agradecimento. 

- oi Spike você veio me agradecer? Não precisa, viu? Você agora é um novo cara, tá novinho em folha. 

Sorri e pensei, é, tá certo, quer trocar de lugar comigo? Alguma coisa me dizia que eu não estava 100%. Sabe aquela impressão de que tem uma nuvem meio escura sobre sua cabeça? Tudo está aparentemente bem, mas você não se convence e fica meio sombrio. Minha mãe se lesse os meus pensamentos diria: 

- deixa disto Spike, pare de pensar bobagens, está tudo bem, lembre-se, você cria sua realidade, então vamos visualizar seu pronto restabelecimento? Você está novinho em folha. 

Sinceramente eu não entendo esta expressão ...  novinho em folha. O que tenho eu, Spike Whith, branco como a lã,  tenho a ver com folhas? Até onde eu sei elas são verdes, mas deixe estar, nunca pretendi versar como minha mãe e algum fundamento, esta expressão há de ter com certeza. 

Doutor Léo disse que estávamos liberados, passou uma receita gigante e fomos para casa. No caminho paramos na farmácia e eu enjoadinho no colo chamei a atenção de todos: 

- tadinha, o que ela tem? 

Não sei por que todo mundo acha que cachorro é fêmea, mas acho que os humanos não conseguem detectar pela cara se somos macho ou fêmea. Isto nos humanos é mais evidente, mas eu fico extremamente confuso com algumas pessoas que vejo na tv.   

Em casa, no sossego do meu lar aquela nuvem insistia em assombrar-me, mas adormeci e um sono estranho se apossou de mim. Pela manhã, ao acordar minha cabeça não doía, aliás, isto é uma das coisas que tenho em comum com a minha mãe, minha cabeça nunca doeu, mas estava pesada, muito pesada. E de repente, sem que me desse conta, comecei a esfregar involuntariamente minhas patas pela cara afora e por mais que eu tentasse, não conseguia deixar de fazê-lo, era como se estivesse possuído. Pensei na nuvem que me seguia e senti meu cérebro em curto, pequenas faíscas e apagões e uma vontade enorme de fugir de tudo isto. Quando me dei por mim, minha mãe segurava minhas patas sujas de sangue tentando impedir meus movimentos, meu peito estava sujo de sangue, minha boca estava ensanguentada e ela concluiu que eu tinha forte dor na gengiva e somente por isto estava meio que enlouquecido. Não sentia dor em lugar algum, mas não fui capaz de conter minhas patas, parecia querer engoli-las e machuquei minhas gengivas que sangravam e me coloriam de vermelho, Estava mais para vampiro do que para cachorro.

Já falei da Doutora Fernanda, ela é mesmo muito gata. Atendeu-me com carinho, medicou-me para a dor, checou minha cirurgia e parecia tudo bem. Também pensou que fosse dor o que eu havia sentido, mas eu sabia que a coisa não era tão simples assim. Voltaria novamente durante a noite gritando, não de sofrimento, mas de pânico por conta destes bruscos movimentos que eu não conseguia controlar e que nada tinha a ver com o mal que eu estava vivenciando.  A dor que eu sentia era a dor do medo e a certeza de algo muito grave estava acontecendo comigo. Antes que me internassem para observação tive outra crise que diziam ser convulsão e ainda assim não perceberam tratar-se de uma epilepsia já instalada. A tal nuvem tinha nome e dizia-me ter vindo para ficar ou me levar, isto seria lá com ela.  Fiquei internado quatro dias, dos quais pouca coisa me recordo. Doutora Clarice medicou-me e recebi alta, ela estava certa de que o medicamento controlado poria fim em minhas crises, mas aconselhou um neurologista, caso elas persistissem. Em casa, muitas e muitas crises me trouxeram de volta e ainda estou por aqui. Minhas convulsões estão controladas com medicamentos pesados e o próximo passo será diminuí-los gradativamente até achar o x da questão, ou seja, a dose ideal  que me mantenha sem as terríveis crises e consciente de quem eu sou,  e onde estou. 



No momento me perco entre a realidade e o sonho, entre estar consciente e seguir alienado. Meus momentos mais felizes começam por volta das 19:00, é quando minha mãe chega e me põe no colo. Mesmo ausente e parecendo um molambo de pelo que vocaliza gemidos, estou consciente da sua presença e seu amor me enche de esperanças. Ela às vezes não consegue esconder as lágrimas, e ainda assim é todo o porto seguro de que preciso. Dias melhores estão por vir meu pequeno, e um beijo suave na minha testa é a deixa que me manda de volta pra minha solitária, que de solitária, não tem nada. Tem muitos peludos por aqui e eu ando bem enturmado com a turma. 


segunda-feira, 18 de junho de 2018

Afinal, todo mundo tem seu dia de Spike.




Por Vitalina de Assis. 







Aqui estou, depois de trinta minutos em um bloco cirúrgico. Estava com um tumor externo, na área circundante do ânus a ser retirado e uma bela de uma tartarectomia canina a ser realizada e de quebra, o veterinário orientou que, em se tratando de um tumor perianal, que são relativamente comuns nos cães geriátricos (sou um  bisavô, foi assim que o doutor Leonardo, Léo para os íntimos, se referiu à minha pessoa com o devido respeito, penso eu) e o tratamento consiste na remoção da massa e castração para evitar ressurgimentos.  O doutor Léo chamou-me de bisavô, ok, não tive filhos, não tenho netos, tampouco terei bisnetos, então só posso crer que me chamou de velho, é, mas ele também anda lá meio, digamos, avançado em anos, no mínimo um vovô bem aparentado. Quer saber? Ser velho não deveria ser considerado vovocência e muito menos bisavocência. Beleza, não existe estas palavras no seu vocabulário? Paciência. No meu é só ladrar e criar e criar.  Então soube eu num susto, que deveria ser castrado, e o que aconteceu? Cá estou eu, sem a menor chance de jogar as bolas, estou rindo, mas é de chorar, estou mutilado. Sniff! Entretanto, verdade seja dita, não tenho herdeiros, nunca me interessei pelo sexo oposto, já nasci "eunuco". - "Veio ao mundo só pra cuidar de mim, me dar amor e carinho", é o que ouço minha mãe dizer o tempo todo. Na verdade ela queria que eu lhe desse netos, mas eu não quis saber do sexo frágil, sou muito é macho para viver sem... encrencas? Ah não, chave de cadeia, já ouvi muito humano dizendo isto, fulana, aquela bisca? Vixe! É chave de cadeia. E assim, uma tentativa de love story aqui e ali que sequer cogitei deram conta do recado. Nunca mais me apresentaram chavezinhas.

Devo esclarecer que sou um cão extremamente familiar, não tenho amigos caninos, mas me dou bem quando tenho que lidar com alguns. Nunca fui agressivo e já fiquei alguns dias na casa da tia Silvia, na companhia de muitos cães do seu canil, entre dobermans e pequenas raças. Fato é que fiquei como um hóspede dentro de sua própria casa dormindo no seu quarto, comendo na cozinha, coisas do gênero, pois canil não é bem a minha praia.

Ah sim, voltando à cirurgia, ( espera, nisto puxei minha mãe, gosto de histórias longas, mas nem pense que falo demais, sou bem reservado, na minha) correu tudo bem, delirei um bocado com o efeito da anestesia, fui parar em outros mundos, viajei geral, rs. Minha mãe ficou um pouco assustada com os meus delírios, mas ficou firme, me aconchegou no seu colo quente e entre um delírio e outro sua presença e carinho acalmava meu coração. Sabia em mim que tudo ficaria bem e ela em si, acreditava piamente no meu pronto restabelecimento. Fomos pra casa.

Durante a noite acomodamo-nos em um colchão no chão para que sua mão, sobre mim repousasse  dando-me paz e tranquilidade, confesso que estava muito inquieto e com uma leve dor. Pela manhã a coisa ficou tensa, o lugar do canino extraído começou a pulsar e a doer horrores, foi então que comecei a esfregar minhas patas e sangrou com força. Minha mãe apavorada, mas tentando manter a calma levou-me de volta à clínica. A doutora Fernanda cuidou de mim, umas três agulhadas e liberou-me para casa. Que alívio! Sem dor e com fome alimentei-me bem e ficamos ali pelo sofá assistindo a copa 2018 - México x Alemanha, torcemos pro México. Minha mãe adora cantar: "México, México te llevo en mí corazón", coisas do coração mesmo, me corcho, pero no entrego a mi madre.  Eu no colo de mamis e sua mão acariciando meus pelos, isto é o céu na terra, Aleluia! 

Fomos dormir mais cedo, "tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus", assim, melodiosamente imaginávamos e de repente, depois de uma hora e meia de um sono dos justos, acordei com aquela dor bem mais intensa. Não teve jeito, perdi a noção e comecei a esfregar freneticamente minha cara peluda, e uma nova hemorragia, desta vez mais abundante nos deixou em pânico. Novamente às pressas para o hospital e eu gritando sem parar. Outra médica, outras agulhas, outro medicamento, fiquei nauseado e chamei o Juca. (Não sabe o que é isto? Vomitei, vomitei, vomitei e tinha uma rajada de sangue mesclada naquilo tudo, sangue que engoli) outro medicamento para cessar os vômitos, minha mãe chorando e eu cada vez mais fragilizado e nem todo carinho, no meu pequeno mundo, mostrou-se o suficiente. Os tais remédios causaram uma confusão em mim e antes que eu fosse devidamente internado, lá estava eu tendo minha primeira convulsão. Mas o que é isto que está acontecendo comigo? Outra agulhada, mas será que estão achando que sou feito de tecido? Querem me costurar? Remendar? Que diabos é isto? Fui me acomodando em meio a este caos. Acomodar na minha idade é quase uma regra de sobrevivência, vamos ficando velhos e facilmente manejáveis de cá pra lá, de lá pra cá. Se não estivermos entre pares que nos amam de verdade, ficaremos à mercê do bom humor e paciência reinante. Não é assim? Quando bebês não tem importância se fazemos pipi aqui ou ali, mas quando velhos mijamos em qualquer lugar e isto pode ser a gota d’água. Felizmente minha mãe compreendeu isto, ela também está envelhecendo, (Eita! Ela só faz xixi no banheiro, viu?) ou melhor, amadurecendo, meditando, buscando paz com todos e com o universo, nem reclama mais, limpa e me olha com amor.  Ela pensa nos seus dias por vir e deseja muito ser tratada com respeito e amor na sua velhice, todos desejamos isto e se plantamos amor e tolerância, é certo que nossa colheita não poderá ser diferente.

Ela me beijou e disse-me que eu ficaria internado com aquelas doutoras gatas, que me diziam coisas meigas e cheiravam o meu pelo perfumado com a loção victoria secret da mamãe. “Nossa, um dog cheiroso assim vai receber cheiro o tempo todo. Pode ficar tranquila mãe, vamos cuidar do seu garoto Spike”. O cansaço tomou conta de mim, apaguei naquele colo que não era o da minha mãe, mas que também era quente e confortável.

terça-feira, 20 de março de 2018

Detalhes, grandes detalhes.


Por Vitalina de Assis.







E assim ela percebeu que o muito pensar e analisar emoções podem não ser o caminho que conduz a uma paz interior. Mas o que fazer com todos estes sentimentos conflitantes que abriga no recôndito de seu ser? Ignorá-los seria o suficiente para afastá-los de vez? Tentou não pensar, tentou bloquear as emoções, decidiu sorrir. Deixou um sorriso flertar em sua face, sentiu uma leveza pousar sobre seus ombros, moveu seu corpo, relaxou  pescoço e ombros -  vestiu-se de paz. Fechou os olhos e decidiu escrever no escuro de suas pálpebras. Às vezes precisamos de poucos minutos para tornar-nos ausência em tudo o que realmente não somos e deixar fluir nossa verdadeira essência, essa que brilha e que, não poucas vezes, ofuscamos momentaneamente seu brilho.


Mais um dia se foi e outro igualmente chegou, amanheceu em outro tempo, outra luz da manhã incidiu sobre ela, e deu-se conta de que a leveza ainda estava ali. Constatar este fato desconcertou-a. Sentir-se mais leve não era seu costumeiro espírito. O que mudara afinal? Questiona sua mente em uma lógica que não  equacionou-se em seu sentir. Ah! Os seus sentimentos -  deu-se conta de que uma simples atitude, uma troca de pensamentos alterou a superfície do seu sentir. Apenas isto? Questionou seu espírito. Mais um pouco e refletiu que qualquer mudança, por mais insignificante que pareça, já coloca em curso um movimento.


Ontem trocou de lugar sua mobília da sala de estar, deslocou o sofá para a parede oposta e a televisão seguiu o mesmo rumo, as cadeiras de apoio giraram sobre seu próprio eixo e lá se foram para o outro lado, e não é que parecem mais altivas? Ela jurou nunca ter reparado o quanto eram sóbrias e não apenas lindas, afinal o preço que pagou por elas, por si só, já era um grande presente. Muitas "ofertas relâmpagos" nos parecem apenas isto, pechincha, e deixamos de enxergar os detalhes, os grandes detalhes. Alguém se incomodou com você e preparou tudo isto, separou com carinho, combinou horário, preço e sem um motivo específico lá estão seus pés a conduzir-te e seu olhar estrategicamente brilha sobre algo especial. São coloridas, flores no encosto, no assento e uma madeira lisa e reluzente a dar-lhe a forma. São lindas e uma felicidade despretensiosa a envolvê-las  contagia todo o seu ser. Será possível? Só custa isto? Perguntou para a jovem vendedora que sorriu-lhe ao dizer:


- São suas e estão prontas para mudar-se para sua casa. Já consigo vê-las compondo lindamente sua sala de estar. E uma piscadela foi o suficiente para que ela não pensasse duas vezes, não possuí-las estava fora de cogitação. Sabe quando conhecemos alguém e é como se o conhecêssemos a vida inteira? Era esta a sensação que lhe vinha à mente, uma familiaridade e conforto a encher-lhe a alma. Naquela tarde foram entregues e ela sentou-se em uma, pulou para a outra, tirou fotos, fez infinitas selfies, estava visivelmente feliz.


Uma brisa leve esvoaçou a cortina e a trouxe de volta ao seu quarto, sentiu o aroma de café que sabia vir do apartamento ao lado, conferiu as horas e agradeceu pela paz de um novo dia.