Estou confuso, interiormente confuso. Não sei o que pode ter mudado na ordem dos meus sentidos após a cirurgia, mas algo sinistro aconteceu.
Saí daquela cirurgia meio aéreo, efeito da
anestesia ouvi dizer. Minha cabeça rodava sem sair do lugar e imagens que eu
desconhecia, com cores que não eu sabia identificar se apresentavam ante meus
olhos e acenavam chamando-me.... vem... vem... vem. Como eu poderia ir se minha
mãe me abraçava dizendo:
- calminha Spike está tudo bem, daqui a pouco vamos pra
casa.
Casa, como é bom ouvir esta palavra, é muito mais do que uma agradável
sonoridade. Casa é lar, é onde você se encontra, é seu território sem nunca ter
tido a necessidade de lutar pela posse. Podem acreditar, ainda me lembro do dia
em que cheguei naquele apartamento, parecia bem maior do que o da minha mãe canina,
a Lara, Tamara era a mãe humana de Lara Larinha, portanto minha avó. Também me
lembro dela, era muito carinhosa comigo e recebia muitas visitas, os irmãos da
igreja e em uma noite pra lá de especial eu conheci minha mãe Vitalina e sua filha
Thamyrez, esta ficou literalmente babando por mim. Thamyrez devia ter quatro ou
cinco anos e não me deixou em paz, não quis me largar nem para comer, imagina
isto. Minha vó Tamara ficou observando e vi no seu olhar, um misto de emoção e
uma lágrima fininha no canto de seus olhos. Olhava para mim, depois para a
Thamyrez e fitou minha mãe, que na época, era sua Pastora. Não sei como tive
esta intuição, mas sabia que meu destino havia sido selado naquele momento.
Aquele olhar que elas trocaram dizia muita coisa, de um lado senti o ato de
dar, doar uma vida para ser amada e cuidada e do outro, o ato de receber, eu
quero amar e cuidar de você. Mais alguns minutos e chegava ao fim aquele
encontro alegre, foram feitas algumas preces de agradecimento e eu no
colo da maninha. Minha vó se aproxima da pastora e a ouço dizer:
- Pastora Cida, (era este seu nome de guerra, rs) a Thamyrez não
desgrudou do filhotinho da Lara nem por um segundo, vou dar ele pra ela agora,
pode ser?
Minha mãe sorriu de uma orelha a outra, mas é lógico que ela estava de
olho em mim e assim encontrei o meu lar, doce lar. Thamyrez mal dormiu nesta
noite, ficou me corujando e seguindo meus passinhos. Ela não entendia que eu
precisava de espaço para explorar cada cantinho e batizar cada lugarzinho
especial, mas fiquei com vergonha de fazer xixi pela casa afora, pois já tinha
sido colocado um jornal estratégico na área, bem debaixo do tanque e então, apenas lambi discretamente
aqui e ali e corri para o jornal.
O cansaço tomou conta de mim, eu queria dormir e Thamyrez me levou pro
quarto dela, mas eu não queria dormir ali. Meu alvo? Quarto da minha mãe. Fingi
adormecer e ela dormiu sem fingimentos, eu levantei e me instalei ao lado da
cabeceira da mamãe, ela sorriu, acariciou minha cabeça ao dizer:
- menino, vamos dormir. Você vai se chamar Spike, Spike
White. Bora dormir, Spike?
Gostei do nome chick! Nada de Branquinho, Totó, Lulu, Luke. Spike, esse
cara sou. "Nossa, que menino esperto" já estava virando clichê. Era
música aos meus ouvidos e verdade seja dita, isto eu sou mesmo. Minha
inteligência canina sempre foi muito aguçada e como conversavam muito comigo,
só faltava mesmo era eu abrir a boca e dizer algumas palavras, mas ficariam
muito assustados, então segurava a minha onda e me comportava
super bem, um gentledog
(ok, não existe esta palavra no seu vocabulário? É bom ir se acostumando
com minha criatividade) que não perdia minha mãe de vista. Ela
conversa o tempo todo comigo, pergunta se sua roupa está boa, fala de
seus amores e desafetos e já a vi chorando algumas vezes. O que eu faço? Fico
de pé e coloco minhas patinhas em sua perna. Ela me olha, me faz um chamego e
para de chorar ou solta o verbo e conta tudo o que está acontecendo. Presenciei
muitos momentos dolorosos, separação, divórcio e outras coisas que um bom
confidente jamais deve contar para alguém, pois guardamos na alma e sentimos a
dor do outro. Ela me olhava com carinho e dizia:
- Tem alguém muito especial aí dentro de você cuidando de mim, não
tem?
Eu ficava meio desconcertado com esta pergunta que não parecia ter lógica. Como assim, alguém
dentro de mim? Não é desta forma que fomos criados. Somos seres únicos, temos
alma e amamos, amamos muito. Arrisco dizer que se somos possuídos, este alguém
que nos possui é um puro sentimento na sua mais profunda essência, é o amor.
Sou feito de amor da cabeça aos pés e nem pensem que Ana Carolina é assim
como gosta de cantar, pois não é mesmo. Entenda-me, não estou falando
mal, desacreditando de sua música, ou desmerecendo suas intenções, mas humanos
amam por medidas fracionadas, nós pets, amamos por inteiro, na totalidade e
isto significa que se não somos amados na mesma medida, a nossa vai sempre
extrapolar. Se amamos mais A do que B? Eu não afirmaria isto, o que eu sei é
que a nossa alma se liga à alma de um humano que nos cuida, ou vice-versa, e eu
ainda não sei como se processa esta escolha, mas compreendo que ela existe.
O Xamanismo acredita que cada humano tem o seu "animal de
poder", ou seja, guias animais protetores que podem ajudá-los na sua
jornada, uma vez que por suas características podem aumentar sua força e
os ajudar a vencer suas fraquezas. Eu acredito nisto, mas você já percebeu que
nem todos os humanos são capazes de adotar um animal, assim como também não tem
"vocação" para gerarem filhos? Então eu só posso concluir que, quando
um humano é escolhido para ter seu "filhote" e quando
este "filhote" elege seu humano naquele grupo, ambos foram
ligados por laços estreitos de amor. Minhas irmãs, quando crianças, com oito anos de diferença tiveram várias
fases: cuidar, amar, brigar, ficar sem conversar por horas e até tapa já vi
rolar. Thamyrez cresceu rápido, a maior da casa e tamanho, (sou pequeno, mas
posso compreender) impõe respeito e Talita tinha que ficar pianinho. Eu também tive minhas fases luas, mas em todas elas prevaleceu o amor.
Então, após a cirurgia, já sem o tumor, sem minhas respeitáveis e
inocentes bolas e alguns dentes fora da minha boca, fui voltando a mim
lentamente e quando me senti sóbrio o bastante pedi para descer pro chão. Que
felicidade poder andar, estar vivo e apesar daquele enjoo, caminhei até à porta
da sala de cirurgia. O anestesista ali estava se organizando
para receber outro paciente, mirei-o com um terno olhar e ele entendeu que era
um gesto de agradecimento.
- oi Spike você veio me agradecer? Não precisa, viu? Você agora é um
novo cara, tá novinho em folha.
Sorri e pensei, é, tá certo, quer trocar de lugar comigo? Alguma coisa
me dizia que eu não estava 100%. Sabe aquela impressão de que tem uma nuvem
meio escura sobre sua cabeça? Tudo está aparentemente bem, mas você não se
convence e fica meio sombrio. Minha mãe se lesse os meus pensamentos
diria:
- deixa disto Spike, pare de pensar bobagens, está tudo bem, lembre-se,
você cria sua realidade, então vamos visualizar seu pronto restabelecimento? Você
está novinho em folha.
Sinceramente eu não entendo esta expressão ... novinho em folha. O
que tenho eu, Spike Whith, branco como a lã, tenho a ver com folhas? Até onde eu
sei elas são verdes, mas deixe estar, nunca pretendi versar como minha mãe e
algum fundamento, esta expressão há de ter com certeza.
Doutor Léo disse que estávamos liberados, passou uma receita gigante e
fomos para casa. No caminho paramos na farmácia e eu enjoadinho no colo chamei
a atenção de todos:
- tadinha, o que ela tem?
Não sei por que todo mundo acha que
cachorro é fêmea, mas acho que os humanos não conseguem detectar pela cara se
somos macho ou fêmea. Isto nos humanos é mais evidente, mas eu fico
extremamente confuso com algumas pessoas que vejo na tv.
Em casa, no sossego do meu lar aquela nuvem insistia em assombrar-me,
mas adormeci e um sono estranho se apossou de mim. Pela manhã, ao acordar minha
cabeça não doía, aliás, isto é uma das coisas que tenho em comum com a minha
mãe, minha cabeça nunca doeu, mas estava pesada, muito pesada. E de repente,
sem que me desse conta, comecei a esfregar involuntariamente minhas patas pela
cara afora e por mais que eu tentasse, não conseguia deixar de fazê-lo, era
como se estivesse possuído. Pensei na nuvem que me seguia e senti meu cérebro
em curto, pequenas faíscas e apagões e uma vontade enorme de fugir de tudo
isto. Quando me dei por mim, minha mãe segurava minhas patas sujas de sangue
tentando impedir meus movimentos, meu peito estava sujo de sangue, minha boca
estava ensanguentada e ela concluiu que eu tinha forte dor na gengiva e somente
por isto estava meio que enlouquecido. Não sentia dor em lugar algum, mas não
fui capaz de conter minhas patas, parecia querer engoli-las e machuquei minhas
gengivas que sangravam e me coloriam de vermelho, Estava mais para vampiro do
que para cachorro.
Já falei da Doutora Fernanda, ela é mesmo muito gata. Atendeu-me com carinho,
medicou-me para a dor, checou minha cirurgia e parecia tudo bem. Também pensou
que fosse dor o que eu havia sentido, mas eu sabia que a coisa não era tão
simples assim. Voltaria novamente durante a noite gritando, não de sofrimento,
mas de pânico por conta destes bruscos movimentos que eu não conseguia
controlar e que nada tinha a ver com o mal que eu estava vivenciando. A dor que eu sentia era a dor do medo e a
certeza de algo muito grave estava acontecendo comigo. Antes que me internassem
para observação tive outra crise que diziam ser convulsão e ainda assim não
perceberam tratar-se de uma epilepsia já instalada. A tal nuvem tinha nome e
dizia-me ter vindo para ficar ou me levar, isto seria lá com ela. Fiquei
internado quatro dias, dos quais pouca coisa me recordo. Doutora Clarice medicou-me e recebi
alta, ela estava certa de que o medicamento controlado poria fim em minhas crises, mas aconselhou um neurologista, caso elas persistissem. Em casa, muitas e muitas crises me trouxeram de volta e ainda estou por
aqui. Minhas convulsões estão controladas com medicamentos pesados e o próximo
passo será diminuí-los gradativamente até achar o x da questão, ou seja, a dose
ideal que me mantenha sem as terríveis crises e consciente de quem eu sou,
e onde estou.

No momento me perco entre
a realidade e o sonho, entre estar consciente e seguir alienado. Meus momentos
mais felizes começam por volta das 19:00, é quando minha mãe chega e me põe no
colo. Mesmo ausente e parecendo um molambo de pelo que vocaliza gemidos, estou
consciente da sua presença e seu amor me enche de esperanças. Ela às vezes não
consegue esconder as lágrimas, e ainda assim é todo o porto seguro de que preciso. Dias
melhores estão por vir meu pequeno, e um beijo suave na minha testa é a deixa
que me manda de volta pra minha solitária, que de solitária, não tem
nada. Tem muitos peludos por aqui e eu ando bem enturmado com a turma.