segunda-feira, 18 de junho de 2018

Afinal, todo mundo tem seu dia de Spike.




Por Vitalina de Assis. 







Aqui estou, depois de trinta minutos em um bloco cirúrgico. Estava com um tumor externo, na área circundante do ânus a ser retirado e uma bela de uma tartarectomia canina a ser realizada e de quebra, o veterinário orientou que, em se tratando de um tumor perianal, que são relativamente comuns nos cães geriátricos (sou um  bisavô, foi assim que o doutor Leonardo, Léo para os íntimos, se referiu à minha pessoa com o devido respeito, penso eu) e o tratamento consiste na remoção da massa e castração para evitar ressurgimentos.  O doutor Léo chamou-me de bisavô, ok, não tive filhos, não tenho netos, tampouco terei bisnetos, então só posso crer que me chamou de velho, é, mas ele também anda lá meio, digamos, avançado em anos, no mínimo um vovô bem aparentado. Quer saber? Ser velho não deveria ser considerado vovocência e muito menos bisavocência. Beleza, não existe estas palavras no seu vocabulário? Paciência. No meu é só ladrar e criar e criar.  Então soube eu num susto, que deveria ser castrado, e o que aconteceu? Cá estou eu, sem a menor chance de jogar as bolas, estou rindo, mas é de chorar, estou mutilado. Sniff! Entretanto, verdade seja dita, não tenho herdeiros, nunca me interessei pelo sexo oposto, já nasci "eunuco". - "Veio ao mundo só pra cuidar de mim, me dar amor e carinho", é o que ouço minha mãe dizer o tempo todo. Na verdade ela queria que eu lhe desse netos, mas eu não quis saber do sexo frágil, sou muito é macho para viver sem... encrencas? Ah não, chave de cadeia, já ouvi muito humano dizendo isto, fulana, aquela bisca? Vixe! É chave de cadeia. E assim, uma tentativa de love story aqui e ali que sequer cogitei deram conta do recado. Nunca mais me apresentaram chavezinhas.

Devo esclarecer que sou um cão extremamente familiar, não tenho amigos caninos, mas me dou bem quando tenho que lidar com alguns. Nunca fui agressivo e já fiquei alguns dias na casa da tia Silvia, na companhia de muitos cães do seu canil, entre dobermans e pequenas raças. Fato é que fiquei como um hóspede dentro de sua própria casa dormindo no seu quarto, comendo na cozinha, coisas do gênero, pois canil não é bem a minha praia.

Ah sim, voltando à cirurgia, ( espera, nisto puxei minha mãe, gosto de histórias longas, mas nem pense que falo demais, sou bem reservado, na minha) correu tudo bem, delirei um bocado com o efeito da anestesia, fui parar em outros mundos, viajei geral, rs. Minha mãe ficou um pouco assustada com os meus delírios, mas ficou firme, me aconchegou no seu colo quente e entre um delírio e outro sua presença e carinho acalmava meu coração. Sabia em mim que tudo ficaria bem e ela em si, acreditava piamente no meu pronto restabelecimento. Fomos pra casa.

Durante a noite acomodamo-nos em um colchão no chão para que sua mão, sobre mim repousasse  dando-me paz e tranquilidade, confesso que estava muito inquieto e com uma leve dor. Pela manhã a coisa ficou tensa, o lugar do canino extraído começou a pulsar e a doer horrores, foi então que comecei a esfregar minhas patas e sangrou com força. Minha mãe apavorada, mas tentando manter a calma levou-me de volta à clínica. A doutora Fernanda cuidou de mim, umas três agulhadas e liberou-me para casa. Que alívio! Sem dor e com fome alimentei-me bem e ficamos ali pelo sofá assistindo a copa 2018 - México x Alemanha, torcemos pro México. Minha mãe adora cantar: "México, México te llevo en mí corazón", coisas do coração mesmo, me corcho, pero no entrego a mi madre.  Eu no colo de mamis e sua mão acariciando meus pelos, isto é o céu na terra, Aleluia! 

Fomos dormir mais cedo, "tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus", assim, melodiosamente imaginávamos e de repente, depois de uma hora e meia de um sono dos justos, acordei com aquela dor bem mais intensa. Não teve jeito, perdi a noção e comecei a esfregar freneticamente minha cara peluda, e uma nova hemorragia, desta vez mais abundante nos deixou em pânico. Novamente às pressas para o hospital e eu gritando sem parar. Outra médica, outras agulhas, outro medicamento, fiquei nauseado e chamei o Juca. (Não sabe o que é isto? Vomitei, vomitei, vomitei e tinha uma rajada de sangue mesclada naquilo tudo, sangue que engoli) outro medicamento para cessar os vômitos, minha mãe chorando e eu cada vez mais fragilizado e nem todo carinho, no meu pequeno mundo, mostrou-se o suficiente. Os tais remédios causaram uma confusão em mim e antes que eu fosse devidamente internado, lá estava eu tendo minha primeira convulsão. Mas o que é isto que está acontecendo comigo? Outra agulhada, mas será que estão achando que sou feito de tecido? Querem me costurar? Remendar? Que diabos é isto? Fui me acomodando em meio a este caos. Acomodar na minha idade é quase uma regra de sobrevivência, vamos ficando velhos e facilmente manejáveis de cá pra lá, de lá pra cá. Se não estivermos entre pares que nos amam de verdade, ficaremos à mercê do bom humor e paciência reinante. Não é assim? Quando bebês não tem importância se fazemos pipi aqui ou ali, mas quando velhos mijamos em qualquer lugar e isto pode ser a gota d’água. Felizmente minha mãe compreendeu isto, ela também está envelhecendo, (Eita! Ela só faz xixi no banheiro, viu?) ou melhor, amadurecendo, meditando, buscando paz com todos e com o universo, nem reclama mais, limpa e me olha com amor.  Ela pensa nos seus dias por vir e deseja muito ser tratada com respeito e amor na sua velhice, todos desejamos isto e se plantamos amor e tolerância, é certo que nossa colheita não poderá ser diferente.

Ela me beijou e disse-me que eu ficaria internado com aquelas doutoras gatas, que me diziam coisas meigas e cheiravam o meu pelo perfumado com a loção victoria secret da mamãe. “Nossa, um dog cheiroso assim vai receber cheiro o tempo todo. Pode ficar tranquila mãe, vamos cuidar do seu garoto Spike”. O cansaço tomou conta de mim, apaguei naquele colo que não era o da minha mãe, mas que também era quente e confortável.